quinta-feira, 23 de agosto de 2012

leis da Vida


            Nesta pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul havia um candidato que promoveu sua campanha política usando o argumento do homem ter direito total na escolha sobre a vida, apoiando a idéia de cada cidadão decidir à hora da própria morte. Sem explicar como cumpriria a promessa, foi eleito pela população. Quando assumiu enviou o projeto à câmara municipal e este foi aprovado com louvor entre os vereadores, secretarias e serviço público. Havia em cada um o motivo pessoal de prolongar a vida até cansar-se da própria existência. Em alguns meses ninguém mais na cidade poderia morrer por acidentes, causas naturais, assassinatos, doenças ou qualquer outro motivo. Escolher pela morte tornou-se responsabilidade própria. Quando o indivíduo decidisse morrer bastaria ir a um cartório civil para emitir a certidão de óbito. Porém existiam duas condições para partir deste mundo: maioridade civil e impostos em dia. Esta última era a garantia de que ninguém escolheria pela morte desejando esquivar-se de dívidas.

            A cidade outrora pacata vivia agora uma rotina agitada. Acidentes no trânsito fizeram os moradores perceberem que todo machucado a partir de então se tornara superficial. Houve um significativo aumento na violência, porém, como não havia baixas, não era preocupante. Brigas e duelos clandestinos aconteciam nas partes afastadas da cidade. Como eram comuns os confrontos armados, marcas de balas pelo corpo passaram a ser exibidas como troféus pela boemia que contava suas aventuras nas rodas dos bares.

            Enquanto em outras localidades as pessoas continuavam morrendo naturalmente, se espalhou a notícia que a própria morte perseguia os moradores da cidade que cruzassem suas fronteiras, acertando contas sobre violações de seus direitos nas terras onde ela ainda fazia valer sua lei.

            Multidões de outros lugares decidiram viver onde só faleciam os que desejassem. A população de setenta e cinco mil habitantes em menos de um ano ficou sete vezes maior, com migração contínua. Famílias inteiras chegavam, fazendo com que o valor dos imóveis inflacionasse proporcionalmente. Indústrias fecharam acordos, obras surgiam da noite para o dia e a cidade rapidamente se modernizou. Porém nunca conseguindo sustentar a demanda das inúmeras pessoas que apareciam buscando a promessa de uma vida longa. Em poucos anos as conseqüências do rápido progresso apareceram. Áreas verdes foram invadidas dando lugar a um mar de barracos, problemas em encontrar lugar para depositar o lixo, e não restou mais solo para qualquer tipo de produção. A economia que rapidamente foi ao ápice encontrou sua queda em velocidade proporcional. O desemprego afetava a grande maioria, juntamente com uma multidão de moradores de rua que gemia no frio do inverno pampiano. Crescente era a dor causada pela fome, e a poluição tornava difícil respirar. Hospitais estavam sempre lotados de pacientes em estado terminal que a todo o momento chegavam não podendo ser curados, só ocupando espaço, que já não era um privilégio no resto da cidade. Porém, mesmo com a péssima qualidade de vida no local a população continuava a crescer.

            Eu já estava cansado, triste, desolado com a situação. Passando fome, desempregado e abalado psicologicamente devido à pressão de não conseguir mudar minha condição precária, decidi procurar o cartório local a fim de dar baixa na vida. Contas antigas surgiram no sistema e não havia como pagá-las. Na fila de atendimento observei outros que não conseguiam a certidão e percebi que este não era um problema só meu. Desolado, permaneci por três horas me debatendo com uma corda no pescoço em uma tola tentativa tradicional de encontrar a morte. Obviamente falhei. Fui retirado de lá pelo vizinho.

            Meu suposto herói não foi em minha casa na intenção de livrar meu pescoço da forca. Queria contar à novidade que se espalhava pela cidade, e sobre como tivera contato com sua falecida mãe. Os mortos haviam saído de suas covas podendo ser encontrados caminhando pelas ruas ou protestando frente à câmara municipal. Queriam o fim do controle sobre a hora da morte. Certa vez encontrei entre eles um antigo amigo que morrera pouco antes desta lei entrar em vigor. Perguntei o que nos esperava após a vida. Respondeu:

            - Fará alguma diferença o que direi sobre o além? Se te falar de dores e sofrimentos em uma eterna lamúria, ou descrever um panorama glorioso de felicidade sem fim, de forma alguma desejarás abandonar tua vida. Voltamos a este mundo somente para resolver este problema. O homem quer prolongar ao máximo sua existência. Morrer nunca será seu desejo.

            - Você está generalizando. – respondi – Estou farto deste fardo e a pouco falhei na tentativa de morrer.

            - Tu não estás sendo sincero quando diz que tentou. Sabias das dívidas e do quão falho é enforcar-se com esta lei em vigor. Se realmente era teu desejo, teria que deixar a cidade. Sabes disso, mas és como todo o resto que aqui vive.

            Senti-me envergonhado e saí dali o mais rápido possível. Mas sem antes ser alertado que em pouco tempo encontraria a resposta da minha questão sobre o além.

Passaram alguns dias com os políticos ignorando a situação de protesto que pedia revogação da lei. Percebendo o pouco caso, os mortos decidiram que a melhor decisão seria atear fogo na câmara municipal. Bombeiros foram chamados, porém não conseguiram abrir caminho em meio à multidão protestante. O prédio ardia lentamente, e poucos minutos após o fogo penetrar na sala onde eram guardados os arquivos com documentos e leis, notou-se entre o corpo de bombeiros que muitos caíam mortos, enquanto alguns agonizavam gritando, queimando. Nas rodas dos bares a polícia encontrou corpos perfurados por balas jamais encontradas, e os hospitais lotados finalmente liberaram leitos. Os mortos sorriam perante a missão cumprida, regressando às suas covas.

Deitado em minha cama não consegui respirar, sentindo uma corda apertar no pescoço. Debatia-me lutando em meus últimos momentos. Naquele instante seria esquecido como se nunca tivesse existido; escapava da vida enquanto perdia minhas forças. Ela continuaria eternamente, imortalizando-se a cada nascimento, ganhando força naquilo que é novo, enquanto eu não me encontrava mais entre seus planos e leis.

2 comentários:

  1. É estranho, isso me lembra um conto de um livro medieval.
    "Um homem conseguiu descobrir de forma misteriosa o dia de sua morte, então ele resolveu viver sua vida de pecados, cometendo tudo que o agradasse, pois sua logica era de que quando faltasse um ano para sua morte ele se arrependeria de tudo e viveria para servir as bondades da vida para ser aceito no céu. Um dia antes de se arrepender o homem teve sua morte declarada por forças divinas, assim ele viveu e morreu no pecado."

    O homem que sabe a data de sua morte pode ser capaz de realizar coisas inacreditáveis, O homem que não sabe quando será sua morte nunca vai viver tão intensamente!

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  2. Desconheço esse conto, mas tem uma ideia interessante.
    Meu foco foi um pouco diferente, pois os moradores da cidade não sabiam a hora da morte e acabavam por adiá-la mesmo percebendo o quanto isso afetaria negativamente o padrão da vida local, pois todos temos que morrer uma hora para dar espaço ao próximo. E entendendo esta responsabilidade, o personagem acaba por se firmar em desculpas para não ir embora deste mundo, quando sabia exatamente o que poderia fazer.

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